sexta-feira, 19 de março de 2010

Rogério Silva – a arte de um outro mundo, palavras de Onésimo Teotónio de Almeida

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Falar de Rogério Silva aqui entre nós também é falar de Carlos Faria.
É exactamente por essa razão que seguidamente se publica um artigo que foi publicado no Jornal de Letras com a assinatura de Onésimo Teotónio de Almeida, por altura do falecimento do primeiro, e que nos foi gentilmente remetido por este.
O texto foi abundantemente lido por todos os amigos mas, publicá-lo aqui é um prazer de que não nos inibimos porque faz luz sobre esse território de generosidades e paixões comuns que foram aquelas de que comungaram os conhecidos de ambos, e somos quase todos nós.


Ao Rogério Silva encontrei-o eu pela primeira vez na Horta num mural. Já ouvira falar, mas o conhecimento não dava ainda para descobri-lo ali naquela parede da Insulana numa estilização de baleias, baleeiros e Pico. Quedei-me na contemplação dos traços dinâmicos fora do tradicional e não sei já o que lá fora fazer. Depois, percebi as semelhanças entre aquelas cores e motivos e as capas da revista Gávea que pela mão do Rogério, Almeida Firmino e Emanuel Félix, nos anos cinquenta (criança nessa altura, eu só a conheci passados anos) tentou acordar Angra de uma letargia antiga. Mas quem sobre o pintor mais me badalou ao ouvido em letra de forma foi o Carlos Faria, que nos porões dos navios trazia de Lisboa medicamentos de mistura com telas e poemas. Dos medicamentos, as farmácias saberão. Os poemas, esses via-os plantados no suplemento “Glacial”, de A União, onde o Karlos Faria com K fazia leitores jovens como era eu vibrar de espanto. Volta e meia, o Karlos clamava no deserto anunciando o Rogério e a nova arte que ele desbravava no arquipélago.
O Karlos trazia quadros e mais quadros. Ele e o Rogério não se cansavam de organizar exposições em Angra e ilhas adjacentes. O Rogério, pedagogo pacientemente didáctico, acompanhava visitas guiadas para adultos, jovens e crianças de escola. Foi assim que em Angra tivemos acesso a trabalhos do António Palolo, Bartolomeu Cid, Artur Bual, Nadir Afonso, Costa Brites, e do próprio Rogério Silva, que beneditino se fizera apóstolo das novas formas estéticas pintando quadros com os Açores em movimento a procurar vencer o marasmo secular ilhéu - moinhos de vento de velas enfunadas, baleias astutas domadas por ainda mais astutos baleeiros, nuvens agitadas descobrindo céus e anunciando azul para um futuro breve.
Entretanto, perdi-me uns anos por Lisboa e noutros livros. Nos alvores da década de setenta, já com os costados na Nova Inglaterra, descobri-me de súbito novamente vizinho do Rogério. Aconteceu numa festa num parque em New Bedford onde os também hoje saudosos Manuel Bettencourt Silveira e Heldo Braga reataram entre nós o laço que os mares haviam desatado.
O Rogério fervilhava de ideias. Fui a sua casa onde pintava uma New Bedford que, insistia o Heldo em livro de poemas (nunca publicado), um dia veria crescer rosas em Novembro. O Rogério acreditava e pintava. A escola do seu bairro, ali à Coggeshall St, os arranha-céus de azul límpido por detrás da wasteland de ferro-velho, imigrantes divididos e distraídos no jogo em tardes de tasca-sem-fim. Mas sempre as cores luminosas e os traços firmes apontando para futuros optimistas a emergirem do caos, ordem e tranquilidade a renascer de caixotes opressivos evocando fábricas escuras e tristes - onde ele aliás suou copiosamente.
Vieram planos. A editora Gávea-Chama, lugar da primeira edição do meu Ah! Mònim dum Corisco!, depois a ideia da revista Gávea-Brown que ele quis muito fosse continuação do antigo projecto Gávea. Integradas em eventos gerados pelo entusiasmo dos meus verdes anos, surgiram exposições da sua obra por aqui e por ali, causando admiração porque um greenhorn supostamente não pintaria assim – Brown, Cambridge, Boston e outros lugares que não recordo com exactidão porque escrevo de cor, em férias, surpreendido pela notícia da morte do Rogério e sem poder recorrer a nada a não ser o que a memória guarda na caixa do pronto-a-lembrar. Espantoso de ver era a minúcia com que o Rogério preparava cada exposição até ao pormenor da maquete com reproduções em miniatura dos quadros, a caixa que ele construia para cada pintura que ele próprio emoldurava, tudo num primor de perfeição chinesa.
Entretanto, os anos foram passando. Era preciso que o Rogério deixasse de ser de um mundo que já não existia – o dos Açores que o moldaram - e palmilhasse Américas despudoradas para se fazer presente, convencer galerias a exporem os seus quadros, conhecer os meandros das bolsas ou investir dinheiro que não tinha para que a sua arte fosse (re)conhecida. O Rogério chocava-se porque “a arte é arte e não se suja”. Pelo menos a arte do Rogério, ou tal como ele a concebia. Esquecia-se de que mesmo Miguel Ângelo, Rafael e Leonardo nada teriam feito se não fossem os mecenas - papas, cardeias e duques com a grana que paga as tintas e mata a fome ao artista. O Rogério não acreditava. Nos Açores do seu tempo, tudo fluía sem massa, embora não se esquecesse nunca do facto crucial de ter sido por um mal-entendido nessa matéria que fora ele próprio bater com os ossos nos States, quando um Instituto lhe pediu um trabalho como devia ser e ele despendeu a soma que achava necessária por exigências da arte em si. Chegada, porém, a conta, minguou o dinheiro porque ninguém alguma vez supusera que as coisas da arte custassem assim tanto, e o Rogério deu de repente consigo numa fábrica de New Bedford para poder pagar a prestações.
E, todavia, ele sonhou sempre com o regresso porque, nos seus idílicos Açores, a Cultura, e sobretudo a Arte, escreviam-se com maiúscula, em letra pura, quase sobrenatural. Se nos Açores o asceta Rogério vivia nas nuvens, em New Bedford viveu das nuvens.
A última vez que me cruzei com ele aconteceu em Vila do Porto, Santa Maria. Tinha realizado o sonho do regresso a casa (nascido no Faial – em 1929, creio eu - , era à sua adoptiva Angra que chamava pátria) e viajava de ilha em ilha, de novo apóstolo da arte ensinando nas escolas o que ela é e como se faz. Mas a desilusão estava-lhe plantada nos olhos. Os tempos haviam mudado e também ele não reencontrara a ilha de onde em tempos partira. A seu ver, a arte estava bastante conspurcada, vendia-se e comprava-se por alto preço. Por todo o lado encontrava banha de cobra a valer fortunas, e as gentes estonteadas com a pimenta das Índias europeias, chegada de Bruxelas em chorudos pacotes, construiam casas de paredes amplas a exigirem pinturas a metro. Qualquer Chico Esperto agarrava de um pincel e, logo ali, com a mão direita rabiscava umas patranhas, enquanto contava cifrões na algibeira com a esquerda. Para culminar o desaire, a sua ideia de arte como missão esvaíra-se com os tempos, a linguagem artística era outra, os rostos idem, e o Rogério sentiu-se peixe fora das suas águas familiares.
O Rogério também não se sentia mais da sua terra. New Bedford estava definitivamente longe, e a Lusa, seu arrimo sólido, incondicional apoiante e dedicadíssima companheira, escondia uma doença que a levou. Nos anos que se seguiram, o Rogério deixou de existir para o exterior, e porventura para si próprio. Enconchou e fez-se lapa na pedra da sua memória, sem nunca mais abrir para ninguém.
Agora chegou de Angra, via João Afonso - talvez o seu mais perene amigo - a notícia de que partiu para um outro mundo. Partiu nada! O Rogério nunca viveu neste. Se partiu, foi para onde sempre esteve. Quem, como eu, teve a sorte de o ver, foi apenas contemplado pelas suas aparições. Que ficaram indeléveis. Ajudadas, naturalmente pelos seus quadros, memória viva dele a lembrá-lo diariamente lá em casa.
Ou em qualquer lugar. Como aqui mesmo, neste mar algarvio, sem baleias.



Onésimo Teotónio Almeida
Alvor, 27 de Junho de 2006

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domingo, 14 de março de 2010

Assembleia Municipal das Velas aprovou voto de pesar pelo falecimento de Carlos Faria



VOTO DE PESAR


Carlos Faria, poeta deste “S. Jorge: Açores! Perto de Portugal como tudo o que está no mar…” onde “esmeralda é a pele da ilha”, faleceu no passado dia 16 de Janeiro.
Foi ele que uma vez escreveu: “sobrevoar S. Jorge dá-me uma alegria nova e diferente. É um longo corpo de pedra, uma natureza insular que sinto à sua altura humana e geográfica. S. Jorge: a ilha, a mais ilha, a mais demorada, tranquila, isolada de silêncio, longa garupa dum cavalo de basalto! A ilha mais ilha, a povoar o mar que a viaja!”
Mas quem é esse “viandante que vem das poluídas metrópoles de aço e betão descobrir o caminho telúrico para as fajãs”, como escreve Urbano Bettencourt?

Artur Goulart descreve-o:

“Representante de uma firma de produtos farmacêuticos, terminados os seus contactos profissionais, na Calheta com o dr. Fernando Tristão da Cunha, nas Velas, com o António Pamplona e o eng. José Maria Melo, na Farmácia da Misericórdia, o Carlos Faria estava em casa.
Tanto podia estar à conversa no cais com os pescadores, como sentado no adro da igreja, ou ao “canto”, numa das tantas “pedras da preguiça”, como ele lhes chamava, onde o tempo parece que não existe, num cavaqueio de histórias e ditos com algumas das figuras típicas e populares da Vila.
Ou então, voltar à farmácia, onde após o encerramento, a conversa continuava, afiada e solta, mais saudável e popular que um xarope para a tosse. Ou a refrescar o seu físico atlético, perante a estranheza dos velenses, num silencioso banho de mar à meia-noite na baía das Velas. Ou ainda, numa petiscada de lapas ou cracas e outros condimentos em casa de amigos, ao sabor das muitas e apimentadas crónicas locais. Ou porque não, nas Manadas, em casa do Padre Terra Faria, espírito irrequieto e frontal, casa sempre aberta, excelente biblioteca, cozinha livre a qualquer hora, enquanto houvesse e do que houvesse”.

A propósito da sua prática desportiva, nomeadamente a natação e o arremesso, sendo recordista nacional desta última modalidade, conta Costa Brites que “numa acalorada troca de impressões em Ponta Delgada (fim dos anos sessenta) ouvi afirmar a Carlos Faria que o dopping que recomendava a todos os atletas era o da solidariedade fraterna: No próprio dia em que batera este record havia doado sangue gratuitamente a uma senhora idosa que disso carecia!...”

Por sua vez, Onésimo de Almeida assim fala das suas chegadas aos Açores:

“De Lisboa tu chegavas carregado de produtos farmacêuticos embrulhados em poemas e novidades das artes e das letras onde se escondiam ideias ainda mais novas e que o mar não deixava fisgar da distância das ilhas há quinhentos anos encalhadas a meio do Atlântico apesar de esse dealbar dos idos anos sessenta ser já bem tardio no calendário mundial das comunicações . Nunca te vi com nenhum frasco de comprimidos nem de xarope mas as tuas conversas curavam os nossos resfriados apanhados nas correntes de ar que o Tenente-Coronel José Agostinho sabido de meteorologias e das maleitas do clima ilhéu nos dizia temer mais que um canhão”

Com efeito, Carlos Faria, embora nascido na Golegã, nas suas andanças de vendedor de drogas e mesinhas, apaixonou-se pela ilha de S. Jorge e dela escreveu os mais belos poemas.

Mas não foi só a Ilha que o seduziu, foram os Açores! E fizeram-no de tal forma que levou Eduardo Bettencourt Pinto, outro homem de letras açoriano, a escrever que ele “foi, durante muitos anos, uma «ponte» cultural entre as ilhas e o continente, um activista da açorianidade e cantor singular de S. Jorge, seu espaço idílico, humano e geográfico”

Para Álamo Oliveira, como escrevia na revista “O Jorgense” dedicada ao V Encontro de Escritores, “há uma geração significativa de açorianos (não só os que se ligaram à escrita, mas também os que se mantiveram culturalmente activos) que, sempre que se recorre ao passado, se encontra com o Poeta Carlos Faria” terminando dizendo “que a ilha de S. Jorge possui um estimável conjunto de poemas - hino, declaração, esponsal, paixão e encanto deste Poeta que, agora e muito justificadamente, a Câmara Municipal das Velas homenageia. Mas continuaremos em dívida. A homenagem que lhe é devida só poderá ser saldada quando abranger todas as ilhas dos Açores”.

Felizmente para nós Jorgenses e, muito especialmente, para nós Velenses, ao contrário de outras personalidades esquecidas pela Ilha depois de tanto lhe terem dado, o seu livro “São Jorge - O Ciclo da Esmeralda” foi editado pela Câmara Municipal das Velas em 1992, por ocasião da V Semana Cultural, tendo então o lançamento contado com a sua presença.
A mesma edilidade, em 23 de Abril de 1998, atribuiu-lhe a Medalha de Prata do Município.

No mesmo ano, o jornal “Correio de S. Jorge” organizou o V Encontro de Escritores Açorianos, que na sua programação constou uma sessão de homenagem dos escritores presentes a Carlos Faria, tendo sido oradores Urbano Bettencourt, Tristão da Cunha e Artur Goulart, enquanto alguns alunos, coadjuvados pelo «Grupo de Português» do Secundário da Escola Básica 2,3/S das Velas, executaram uma declamação musicada de alguns dos seus poemas.

Agora, Carlos Faria, desapareceu do mundo dos vivos mas, como dizia num dos seus poemas “vou partir … E, não consigo ir inteiramente!”

De facto, não foi inteiramente porque ficará na memória dos que com ele privaram e nos seus poemas que permanecerão incólumes e “os pescadores no Cais das Velas” lhe continuarão a dar um Bom Dia “até ao cerco da noite!” porque em S. Jorge se deleitava e demorava. Mais do que isso, na sua homenagem à ilha “São Jorge – O ciclo da esmeralda”, afirmava e assinava o registo insistente da sua pertença: "Fico em São Jorge: / Viajar sem Viajar!”

Assim, proponho que a Assembleia Municipal das Velas aprove um Voto de Pesar pelo falecimento do Poeta Carlos Faria e guarde um minuto de silêncio em sua memória, fazendo constar este texto na página do Município das Velas e enviando-o ao seu filho, senhor Carlos Nuno Faria, sugerindo também à Câmara Municipal das Velas que, em preito de homenagem, reedite o livro “São Jorge - O ciclo da Esmeralda”

Velas, 30 de Janeiro de 2010

O proponente

António Frederico Correia Maciel

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segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

PEDRA DA PREGUIÇA

Texto pânico, no rescaldo do V Encontro de Escritores Açorianos, na Vila das Velas, São Jorge, de 23 a 25 de Abril de 1998

Vindo de S. Jorge, do V Encontro de Escritores Açorianos, o poeta Carlos Faria foi detido para averiguações à chegada ao aeroporto de Lisboa.

Após a recepção da bagagem, quando se dirigia para a saída, foi interceptado por um zeloso funcionário alfandegário, alertado por um volumoso e aparentemente pesado embrulho transportado pelo poeta.
Apesar de não ter recusado identificar-se e de ter vincado a sua profissão de viajante e o seu ofício de poeta recém-homenageado pelo município das Velas, acrescentando nada ter a declarar segundo as normas em vigor da comunidade europeia, continuou a esbarrar com a insistência do dito funcionário, alicerçada em suspeições quanto ao conteúdo do estranho volume.
Perante tal impertinência, o poeta lavrou em alto e bom som um claro e firme protesto como cidadão no pleno uso das suas faculdades e direitos, embora uma breve e esporádica alusão ao sebastianismo, durante a afirmação da sua cidadania, tenha deixado ainda mais perplexo e precavido o fiscal das alfândegas.

A pressão chegou a tal ponto que Carlos Faria, para acabar de vez com semelhante entrave, resolveu abrir ali mesmo no chão o dito pacote, meticulosamente protegido e embalado como se de rara especialidade farmacêutica se tratasse. E eis que, ao soltar-se o cuidadoso invólucro, diante dos olhos esbugalhados do fiel funcionário e perante a admiração dos que passavam e paravam atraídos pelo inopinado da cena, surge um magnífico e rectangular bloco de basalto, negro e favado, artefacto inviolado de vulcões.
 
– Mas isto é o quê!? – atalha nervoso o funcionário.

E o poeta, espontâneo, natural: 

– Isto é uma “pedra da preguiça”!

E logo o funcionário, habituado à caça e apreensão de drogas e produtos similares, num desabafo:
– Isto deve dar para milhares de doses!!

Perante tal enormidade, Carlos Faria caiu em si e tentou, pacientemente, explicar que aquilo não era para partir, nem para moer, nem para pisar, nem para transformar em pó, muito menos para engolir, para injectar, para cheirar, e ainda menos para vender.
Era simplesmente para sentar… e estar… e conversar.

Não acreditou o rigoroso fiscal, não era possível, ali havia embuste, ninguém trazia uma pedra daquelas de tão longe apenas para se sentar, com tanta pedra por aí e até de mármore. E, mais, não o deixava ir embora sem que tudo fosse convenientemente esclarecido ou a pedra fosse analisada.

O poeta, visivelmente agastado, exigiu recorrer ao testemunho de amigos, que com ele tinham estado em S. Jorge e participado no V Encontro, e que provariam o seu bom nome e a sua inocência. O zeloso fiscal não perdeu tempo para demonstrar que até tinha boa vontade, comprometendo-se a contactar de imediato e por qualquer meio os nomes indicados.

Pedro da Silveira, “mestre e amigo” lhe tinha chamado Carlos Faria, foi o primeiro a tentar convencer o funcionário de que a dita pedra era como se fosse uma “mesa de amigos”, só que não era mesa, era banco, e estava tudo dito;
Madalena Ferin, senhora de muitas interrogações filosóficas e meteorológicas, não resistiu a questionar: será que cada poeta tem a sua pedra da preguiça? Mas então porquê tantos?;
Norberto Ávila, o dramaturgo, esclareceu de imediato que o basalto não tinha consciência da sua força cénica e já se imaginava a escrever “D. João na Pedra da Preguiça”;
Santos Pereira que a imprensa jorgense da segunda metade de oitocentos já sinalizava o lugar da preguiça em contexto popular em oposição aos sítios de lazer da elite velense;
e Artur Teodoro de Matos declarou, sem margem para dúvidas, que isso só teria importância se viesse alterar a moderna historiografia insular, o que não era o caso.

Um outro grupo de amigos foi apanhado, ainda em andanças literárias, a caminho do Vale de São Francisco, na Califórnia.
Todos confirmaram a perfeita inocência do poeta.
Embora a inocuidade da dita pedra fosse imediatamente significada:
para Eduino de Jesus era um pedaço de açorianidade na universalidade portuguesa;
para Vamberto Freitas um suplemento de cultura entre a realidade e a ficção da territorialidade;
Adelaide Baptista lamentou que não se tivesse aproveitado cabalmente a dita pedra pois o V Encontro teria sido menos formal;
Onésimo Almeida que era um “Prosema sobre São Jorge” (aqui o funcionário, agarrado ao telefone, desabafou para o lado que não admitia que fizessem pouco dele) e Eduardo Bettencourt Pinto mataforizou que um ilhéu “sentado na pedra parece o mar” e que pediria encarecidamente à “deusa da chuva” que mais valia fizesse chover uma dessas pedras em Vancouver, do que a granizada do costume.

Do Funchal, Maria Aurora Homem prometeu levar o caso em directo à RTP Madeira, mesmo que o Governo local classificasse de cubana a dita pedra.
Perante tais testemunhos, o tal zeloso funcionário não dava sinais de compreensão ou de cedência, e eis novos contactos, desta vez para os Açores.

De Ponta Delgada, Urbano Bettencourt asseverou que as suspeições sobre a pedra se deviam simplesmente ao facto de ela provir da periferia e que já era tempo de acabar como isso;
José Bettencourt da Câmara que só vinha acentuar as potencialidades do basalto das ilhas e da Fragueira em especial, onde o saudoso maestro Lacerda tinha aurido sobeja inspiração para as sua Trovas;
Dias de Melo, que lessem ao menos o livro dele “Pedras Negras” que já lá estava tudo;
e Ângela Almeida preferiu chamar-lhe “lovestone”, resumindo assim “with tenderness” o seu testemunho.
Das ilhas de baixo, Eduardo Rosa argumentou que a dita pedra podia bem ser considerada um lugar simbólico, bucólico e existencial, que até poderia caber no discurso nemesiano;
João Afonso que, acabada que foi a baleação, deixassem ao menos sentar descansados baleeiros e poetas; Rogério Contente que se lembrassem que o Carlos Faria era tão ou mais popular em São Jorge do que o basalto e o queijo;
Borges Martins ia desfiar um impropério, mas resolveu-se por um improviso:

“Já não me espantaria
que acontecesse, chiça!
Deixem o Carlos Faria 
E a pedra da preguiça!”;

Victor Rui Dores, irritado com tal abuso, que mandaria imediatamente por fax o seu protesto escrito; Manuel Tomás que no “Ilha Maior” lhe daria o devido relevo – por São Jorge!
A Fátima Bettencourt, igualmente no aeroporto, vinda dos Açores e em trânsito para Cabo Verde, nem queria acreditar no que se estava a passar. Tentou desviar a atenção do fiscal para o diálogo da lusofonia e aliciá-lo com o convívio da crioulidade, em paralelo com a pedra da preguiça. Mas sem resultado.

Entretanto, dificuldades de comunicação com a Fajã dos Vimes (porquê sempre as periferias!?) impediram o testemunho dos dois irmãos luso-americanos João Fontes e Francisco Sousa, ambos em curta vilegiatura na terra natal.
Restabelecido o contacto com a ilha, Fernando Tristão da Cunha, experiente profissional farmacêutico, elucidou que era da mais crassa ignorância confundir basalto e poetas com drogas e mezinhas;
Leonel Nunes que isso se resolveria facilmente com os celestiais sabores de umas sopas do Espírito Santo em prol da Escola Profissional; e, por fim, Frederico Maciel, sentindo-se fortemente responsável como organizador do V Encontro, procurou argumentar que, ao contrário das lapas e amêijoas que tinham épocas de defeso, o basalto não. E a preguiça também não, acrescentou, como é lógico, senão perderia o seu poder estruturante e a sua idiossincrasia filosófica.

Eu assistia apreensivo, desde o início dos testemunhos, tentando apoiar e conter o Carlos Faria e aguardando a melhor ocasião para intervir. Aproveitei a deixa do Frederico, que propositadamente lançou grande confusão na massa cinzenta do fiscal das alfândegas, para me apresentar como velho e “glacial” amigo do poeta, conterrâneo do basalto jorgense, e, elogiando o alto sentido patriótico e profissional do dito funcionário, sugerir que, se nos sentássemos no objecto em causa, talvez a experiência ajudasse a perceber a funcionalidade da referida pedra e a veracidade dos testemunhos.
Com certa relutância embora, não fosse a cedência parecer sinal de fraqueza, o funcionário transigiu, e lá nos sentámos: ele ao centro de nós os dois.
Os primeiros sinais de que algo se estava a passar foi um certo relaxamento muscular, um desenrugar de faces, um respirar fundo e descontraído. O Carlos, entretanto, começara, com aquele seu jeito de descoberta, a contar histórias de mestre João, a desfiar ditos e passagens, a mordiscar costumes e inhames, a saborear poemas e vinho de cheiro.
O Tempo a passar, sem tempo, sem azedume.
Aquela gente ali, esquecida, a ouvir. A Ilha a formar-se, tranquila, bordada de fajãs. O mar em volta num abraço.
Foi preciso o toque estridente do telefone de serviço, para quebrar o encanto. O zeloso funcionário estremeceu e correu a atender. Era o Seixas Peixoto, algures na noite da Figueira da Foz, a pintar. Tinha sabido de tudo e vinha pressuroso dar o seu insuspeito testemunho.

- Já não é preciso, respondeu simpático e envolvente o agente alfandegário, já está tudo explicado.

Maio de 1998
Artur Goulart

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Carlos Faria, por Eduardo Bettencourt Pinto

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Falava tão de dentro que as suas mãos cantavam. Soltava-se em gestos largos como um marinheiro cheio de júbilo por sentir os pés na terra amada. Quando vinha de S. Jorge, a ilha amada, trazia os olhos cheios de poemas, o verde fosforescente das escarpas e o secreto rumor do sol que colhia em cada rua, metaforicamente descalço sobre o silêncio.

Encontrámo-nos muitas vezes na saudosa piscina de S. Pedro quando ele aparecia em S. Miguel. Muitas vezes puxou do seu caderno de apontamentos para me ler um poema com a sua voz de barítono em descanso. Quase sempre eram poemas que ele apaixonadamente dedicava à sua ilha açoriana de eleição: S. Jorge. Enquanto lia as ondas do mar rebentavam contra as rochas negras e eu bebia as suas palavras como se fossem água.

Eu era jovem e não percebia ainda muito bem que um poeta não tem país e não tem terra. O seu coração é uma viagem constante pelo Tempo e pelas secretas geografias da vida.

Oiço os adágios de Albinoni e recordo a noite em que eu, o Carlos Faria, o Onésimo Almeida, o Vamberto Freitas e a Maria Aurora Homem estávamos numa esplanada nas Velas. O Carlos, exuberante como sempre, contava histórias naquele ritmo que era tão seu, cheio de vida, energia e esplendor. Foi um serão, como sempre, memorável.

Quando um amigo parte, tudo passa na memória como um filme. Tão pobres, frágeis e efémeros, que podemos fazer senão gastar em palavras o que nos vai no coração? No fundo, queremos apenas dizer que um amigo fica para sempre dentro de nós como uma árvore. Que as suas folhas foram todos os momentos de convívio são, e que a sua vida nos marcou e foi relevante neste mundo.

O Carlos Faria era um português antigo, nobre, cuja amizade não esmorecia como uma chama quase no fim. Tinha o abraço de sempre nos seus braços de ex-campeão de halterofilismo de Portugal, no bolso da camisa os últimos poemas, na voz um calor sem ressentimentos, sempre jovial, felino.

Sim, Carlos, continuo a ouvir-te. Continuaremos sempre, os teus amigos.

Não descanses: lê os teus poemas aos anjos que passam. Canta a ilha nessa dimensão em que o Tempo é apenas uma gota de silêncio entre os dedos.


Eduardo Bettencourt Pinto

NOTA: Este precioso texto foi publicado pelo seu autor no seu blogue PALAVRAS NO BRANCO
No mesmo endereço, em complemento feliz, palavras de Carlos Faria:

Flash (A União, 18 Nov. 1972)*

Karlos Faria

De avião, da Terceira para o Faial… Aqueles minutos breves por cima de S. Jorge… A ilha a correr, ela própria a correr, toda verde e esbelta, virgem e nua, de verde e azul!

Sobrevoar S. Jorge dá-me uma alegria nova e diferente. É um longo corpo de pedra, uma natureza insular que sinto à sua altura humana e geográfica. S. Jorge: a ilha, a mais ilha, a mais demorada, tranquila, isolada de silêncio, longa garupa dum cavalo de basalto! A ilha mais ilha, a povoar o mar que a viaja!

Vou de avião por cima de S. Jorge, cortando a ilha em oblíquo, assim: para que a ilha demore o mais tempo possível na sua cintura de serra… Vou de avião: mas não me sinto mais alto: estou à altura das suas fajãs, ombro a ombro com o seu povo!

S. Jorge: um grito de pedra silencioso e verde. E nuvens como punhos cerrados, depois como mãos abertas! E a ilha, sempre a ilha; coração de pedra, mas a pulsar, a bater, a mergulhar no mar… ah! como em S. Jorge o mar é menos longo, peito aberto do Topo aos Rosais…

De avião: S. Jorge sabe-me a caminhada. Pareço que caminho, toco com os lábios o Pico da Esperança, que caminho… Vou de avião… e desço descalço a Ribeira dos Vimes até à Caldeira… Vou de avião?

O meu companheiro de viagem diz: “esta ilha é S. Jorge. Estamos a passar por cima de S. Jorge”. Isto é fisicamente verdade, a verdade dum passageiro logicamente inviolável. Eu não. Eu sinto que vou por S. Jorge. Por S. Jorge estrada, freguesia, povo, canada, serra, cor, drama, silêncio, natureza, alegria, respiração. Para o meu companheiro a viagem é passar, para mim é estar.

Ele vê-se do avião e no avião. Eu vejo-me de terra e é lá que existo, e penso que os aviões são realidades falsas ou breves enganos do alto…

Não há engano possível: a única realidade é S. Jorge!

* Texto de Carlos Faria: cortesia de Onésimo Almeida e Artur Goulart


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Recordar Carlos Faria, em São Jorge - de Artur Goulart

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Crónica à segunda /15



Conheci o Carlos Faria em S. Jorge, nas Velas, minha terra natal, aí pelos anos 53-54 do século passado. Eu, aluno do Seminário de Angra em férias grandes, ele, no desempenho da sua vida profissional, a dar início ao seu fascínio pela ilha, à sua “naturalização”. Nessa altura, andava eu pelo sétimo ano, o segundo do Curso de Filosofia, como eram conhecidos os três anos preparatórios do Curso de Teologia, últimos quatro dos doze do Seminário. O professor de filosofia era o doutor José Enes, figura significante do pensamento filosófico em Portugal, que nos marcou profundamente, a mim e a muitos outros, ensinando-nos a reflectir sobre o porquê, o sentido das coisas e da vida. Não debitava à toa textos de compêndio escolástico, mas persistentemente nos levava à leitura (alguém me faria hoje acreditar que eu então li de fio a pavio “O Riso” de Henri Bergson?), abria perspectivas de análise, apontava metodologias, trazia para a ribalta as modernas correntes filosóficas.

Raramente depois, nas férias, se encontrava alguém com quem trocar impressões sobre tais assuntos. O Carlos Faria era excepção.


Recordo perfeitamente no Jardim das Velas, eu e outros estudantes em férias, a que se juntou o Carlos, sentados debaixo de uma árvore de copa muito redonda, a que nós chamávamos de “sala azul”, por oposição às do outro lado, maiores, que formavam a “sala verde”, a discutir, ou melhor, a discorrer, lançar opiniões, sobre o existencialismo como se disso dependesse o gozar das férias e, porque não, o rumo da história.
O Carlos, grande conversador, podia não ter preparação filosófica, mas o seu raciocínio arguto e o discurso provocador, aliado às suas experiências de vida e de viagens, ao verbo fácil e atraente, mantinha a chama acesa até soprarem outros ventos de férias.
Representante de uma firma de produtos farmacêuticos, terminados os seus contactos profissionais, na Calheta com o dr. Fernando Tristão da Cunha, nas Velas, com o António Pamplona e o eng. José Maria Melo, na Farmácia da Misericórdia, o Carlos Faria estava em casa.
Tanto podia estar à conversa no cais com os pescadores, como sentado no adro da igreja, ou ao “canto”, numa das tantas “pedras da preguiça”, como ele lhes chamava, onde o tempo parece que não existe, num cavaqueio de histórias e ditos com algumas das figuras típicas e populares da Vila.
Ou então, voltar à farmácia, onde após o encerramento, a conversa continuava, afiada e solta, mais saudável e popular que um xarope para a tosse. Ou a refrescar o seu físico atlético, perante a estranheza dos velenses, num silencioso banho de mar à meia-noite na baía das Velas. Ou ainda, numa petiscada de lapas ou cracas e outros condimentos em casa de amigos, ao sabor das muitas e apimentadas crónicas locais. Ou porque não, nas Manadas, em casa do Padre Terra Faria, espírito irrequieto e frontal, casa sempre aberta, excelente biblioteca, cozinha livre a qualquer hora, enquanto houvesse e do que houvesse.
Aí, num espontâneo serão poético, recordo-me, o Carlos Faria, no chamado salão paroquial, pedir um cobertor para recitar. Eis que começa a declamar o Mostrengo de Fernando Pessoa, ora deitado ora levantado, tanto encenando o monstro que “rodou três vezes”, como a nau e o homem do leme, enquanto a sua voz quente ecoava “manda a vontade, que me ata ao leme, de El-Rei D. João Segundo”. Memorável.

Em S. Jorge se deleitava e demorava. Mais do que isso, na sua homenagem à ilha “São Jorge – O ciclo da esmeralda”, afirmava e assinava o registo insistente da sua pertença: “Fico em São Jorge: / Viajar sem Viajar!”

Évora, 1 de Fevereiro de 2010
Artur Goulart

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Urbano Bettencourt (O Gosto das Palavras, Col. Gaivota, n.º 31. Angra do Heroísmo, SREC,1983).

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Anexo 1 ao Ciclo da Esmeralda

Carlos Faria desembarcou na Ilha quando os sexos dos mordomos murchavam de gangrena e de fastio e as nuvens estendiam os dedos lesmados por cima dos cabeços, das cabeças e das repartições públicas, as marés do tempo escoavam-se imperceptíveis sem ondas nem espuma, deixando apenas um rasto lento e molhado nos olhos e nos lábios: em quinta ou sexta-feira santa, talvez antes no sábado castrado, os navios tinham-se enforcado no Morro das Velas, voltados para a Montanha imóvel que o Almeida Firmino restaurara com o engenho da sua palavra dolorida.
Quem é o viandante que vem das poluídas metrópoles de aço e betão descobrir em 1979 o caminho telúrico para as fajãs, Kerouac naufragado a meio da viagem entre a Europa e a América? Que estranhos desígnios ou augúrios percorrem o homem que se senta em Setembro a ler os tempos pelo rumo das aves migratórias, Ferlinghetti à porta do café do Mike à espera que os humildes herdem a terra sem terem de pagar o imposto sucessório? É preciso não esquecer que Raul Brandão passou por aqui há cinquenta anos, armado com o seu pincel impressionista e apaixonado pela cor e pelas gentes destas Ilhas (ainda) Desconhecidas.
Carlos Faria é um marinheiro eventualmente guardador de rebanhos, por outras palavras um guardador de rebanhos eventualmente marinheiro, ou melhor, Carlos Faria não é uma coisa nem outra, mas ambas ao mesmo tempo e a tempo inteiro e entra por terra dentro disposto a conciliar a neura e o spleen de Roberto de Mesquita (veja-se Baudelaire, esse rei de um país pluvioso, exilado nas Ilhas, a sífilis a corroer-lhe os velhos casarões abandonados, baços e húmidos) com o grito revoltado e marítimo de Antero, definitivamente ancorado ali onde o mar quebra, num cachão rugidor e monótono.
Flagelado pelo drama antigo de partir ou ficar, Carlos Faria assume o compromisso de embarcar; porque embarcar não é partir, muito menos ficar, mas apenas um pretexto para ver a Ilha de fora e simular a ausência nunca realizada, impossível que é quebrar as raízes que se infiltram pelas frestas de lava até ao ventre em fogo do Atlântico. E é no âmago da simulação lucidamente jogada que se encontram o momento e o espaço da solidariedade com os homens, com a terra, mesmo com as pedras e os bichos, num abraço total capaz de concretizar o projecto supremo de reabilitação pública e universal do colectivismo das abelhas.


A contribuição acima, de Urbano Bettencourt, que agradecemos e que publicamos com gosto, foi-nos enviada acompanhada da seguinte mensagem:


Caros amigos,
Estive de tarde a «folhear» os blogues e lembrei-me de um texto que escrevi por ocasião da primeira edição de «S. Jorge-o ciclo da esmeralda».
Publiquei-o inicialmente num dos nº da revista «A Memória da Água-Viva» que o Santos Barros e eu coordenámos em Lisboa, nos finais dos anos 70.
Mais tarde incluí o texto num meu livro de ensaios. É esta a versão que vos envio, se acharem que não desmerece do livro.
Abraço

Uma convocatória de amizades



Este colectivo de lugares (também enumerado na abertura de cada blogue) vai ser especialmente destinado a registar os depoimentos mais ou menos alargados acompanhados de imagens, visões e ilustrações, ligados a todos aqueles que foram amigos do poeta Carlos Faria ou que desejem participar com a legitimidade do seu sentido de partilha.
O endereço para nos remeter esse material (incluso fotografias ou outros documentos, em formato jpeg com uma definição de qualidade razoável) é o seguinte:
carlosfaria1930@gmail.com


NOTA:
Para mensagens de menor extensão e sem ilustrações É FAVOR recorrer ao formato normal dos comentários dos blogues, que aparece no rodapé de cada postagem.

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