sexta-feira, 19 de março de 2010

Rogério Silva – a arte de um outro mundo, palavras de Onésimo Teotónio de Almeida

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Falar de Rogério Silva aqui entre nós também é falar de Carlos Faria.
É exactamente por essa razão que seguidamente se publica um artigo que foi publicado no Jornal de Letras com a assinatura de Onésimo Teotónio de Almeida, por altura do falecimento do primeiro, e que nos foi gentilmente remetido por este.
O texto foi abundantemente lido por todos os amigos mas, publicá-lo aqui é um prazer de que não nos inibimos porque faz luz sobre esse território de generosidades e paixões comuns que foram aquelas de que comungaram os conhecidos de ambos, e somos quase todos nós.


Ao Rogério Silva encontrei-o eu pela primeira vez na Horta num mural. Já ouvira falar, mas o conhecimento não dava ainda para descobri-lo ali naquela parede da Insulana numa estilização de baleias, baleeiros e Pico. Quedei-me na contemplação dos traços dinâmicos fora do tradicional e não sei já o que lá fora fazer. Depois, percebi as semelhanças entre aquelas cores e motivos e as capas da revista Gávea que pela mão do Rogério, Almeida Firmino e Emanuel Félix, nos anos cinquenta (criança nessa altura, eu só a conheci passados anos) tentou acordar Angra de uma letargia antiga. Mas quem sobre o pintor mais me badalou ao ouvido em letra de forma foi o Carlos Faria, que nos porões dos navios trazia de Lisboa medicamentos de mistura com telas e poemas. Dos medicamentos, as farmácias saberão. Os poemas, esses via-os plantados no suplemento “Glacial”, de A União, onde o Karlos Faria com K fazia leitores jovens como era eu vibrar de espanto. Volta e meia, o Karlos clamava no deserto anunciando o Rogério e a nova arte que ele desbravava no arquipélago.
O Karlos trazia quadros e mais quadros. Ele e o Rogério não se cansavam de organizar exposições em Angra e ilhas adjacentes. O Rogério, pedagogo pacientemente didáctico, acompanhava visitas guiadas para adultos, jovens e crianças de escola. Foi assim que em Angra tivemos acesso a trabalhos do António Palolo, Bartolomeu Cid, Artur Bual, Nadir Afonso, Costa Brites, e do próprio Rogério Silva, que beneditino se fizera apóstolo das novas formas estéticas pintando quadros com os Açores em movimento a procurar vencer o marasmo secular ilhéu - moinhos de vento de velas enfunadas, baleias astutas domadas por ainda mais astutos baleeiros, nuvens agitadas descobrindo céus e anunciando azul para um futuro breve.
Entretanto, perdi-me uns anos por Lisboa e noutros livros. Nos alvores da década de setenta, já com os costados na Nova Inglaterra, descobri-me de súbito novamente vizinho do Rogério. Aconteceu numa festa num parque em New Bedford onde os também hoje saudosos Manuel Bettencourt Silveira e Heldo Braga reataram entre nós o laço que os mares haviam desatado.
O Rogério fervilhava de ideias. Fui a sua casa onde pintava uma New Bedford que, insistia o Heldo em livro de poemas (nunca publicado), um dia veria crescer rosas em Novembro. O Rogério acreditava e pintava. A escola do seu bairro, ali à Coggeshall St, os arranha-céus de azul límpido por detrás da wasteland de ferro-velho, imigrantes divididos e distraídos no jogo em tardes de tasca-sem-fim. Mas sempre as cores luminosas e os traços firmes apontando para futuros optimistas a emergirem do caos, ordem e tranquilidade a renascer de caixotes opressivos evocando fábricas escuras e tristes - onde ele aliás suou copiosamente.
Vieram planos. A editora Gávea-Chama, lugar da primeira edição do meu Ah! Mònim dum Corisco!, depois a ideia da revista Gávea-Brown que ele quis muito fosse continuação do antigo projecto Gávea. Integradas em eventos gerados pelo entusiasmo dos meus verdes anos, surgiram exposições da sua obra por aqui e por ali, causando admiração porque um greenhorn supostamente não pintaria assim – Brown, Cambridge, Boston e outros lugares que não recordo com exactidão porque escrevo de cor, em férias, surpreendido pela notícia da morte do Rogério e sem poder recorrer a nada a não ser o que a memória guarda na caixa do pronto-a-lembrar. Espantoso de ver era a minúcia com que o Rogério preparava cada exposição até ao pormenor da maquete com reproduções em miniatura dos quadros, a caixa que ele construia para cada pintura que ele próprio emoldurava, tudo num primor de perfeição chinesa.
Entretanto, os anos foram passando. Era preciso que o Rogério deixasse de ser de um mundo que já não existia – o dos Açores que o moldaram - e palmilhasse Américas despudoradas para se fazer presente, convencer galerias a exporem os seus quadros, conhecer os meandros das bolsas ou investir dinheiro que não tinha para que a sua arte fosse (re)conhecida. O Rogério chocava-se porque “a arte é arte e não se suja”. Pelo menos a arte do Rogério, ou tal como ele a concebia. Esquecia-se de que mesmo Miguel Ângelo, Rafael e Leonardo nada teriam feito se não fossem os mecenas - papas, cardeias e duques com a grana que paga as tintas e mata a fome ao artista. O Rogério não acreditava. Nos Açores do seu tempo, tudo fluía sem massa, embora não se esquecesse nunca do facto crucial de ter sido por um mal-entendido nessa matéria que fora ele próprio bater com os ossos nos States, quando um Instituto lhe pediu um trabalho como devia ser e ele despendeu a soma que achava necessária por exigências da arte em si. Chegada, porém, a conta, minguou o dinheiro porque ninguém alguma vez supusera que as coisas da arte custassem assim tanto, e o Rogério deu de repente consigo numa fábrica de New Bedford para poder pagar a prestações.
E, todavia, ele sonhou sempre com o regresso porque, nos seus idílicos Açores, a Cultura, e sobretudo a Arte, escreviam-se com maiúscula, em letra pura, quase sobrenatural. Se nos Açores o asceta Rogério vivia nas nuvens, em New Bedford viveu das nuvens.
A última vez que me cruzei com ele aconteceu em Vila do Porto, Santa Maria. Tinha realizado o sonho do regresso a casa (nascido no Faial – em 1929, creio eu - , era à sua adoptiva Angra que chamava pátria) e viajava de ilha em ilha, de novo apóstolo da arte ensinando nas escolas o que ela é e como se faz. Mas a desilusão estava-lhe plantada nos olhos. Os tempos haviam mudado e também ele não reencontrara a ilha de onde em tempos partira. A seu ver, a arte estava bastante conspurcada, vendia-se e comprava-se por alto preço. Por todo o lado encontrava banha de cobra a valer fortunas, e as gentes estonteadas com a pimenta das Índias europeias, chegada de Bruxelas em chorudos pacotes, construiam casas de paredes amplas a exigirem pinturas a metro. Qualquer Chico Esperto agarrava de um pincel e, logo ali, com a mão direita rabiscava umas patranhas, enquanto contava cifrões na algibeira com a esquerda. Para culminar o desaire, a sua ideia de arte como missão esvaíra-se com os tempos, a linguagem artística era outra, os rostos idem, e o Rogério sentiu-se peixe fora das suas águas familiares.
O Rogério também não se sentia mais da sua terra. New Bedford estava definitivamente longe, e a Lusa, seu arrimo sólido, incondicional apoiante e dedicadíssima companheira, escondia uma doença que a levou. Nos anos que se seguiram, o Rogério deixou de existir para o exterior, e porventura para si próprio. Enconchou e fez-se lapa na pedra da sua memória, sem nunca mais abrir para ninguém.
Agora chegou de Angra, via João Afonso - talvez o seu mais perene amigo - a notícia de que partiu para um outro mundo. Partiu nada! O Rogério nunca viveu neste. Se partiu, foi para onde sempre esteve. Quem, como eu, teve a sorte de o ver, foi apenas contemplado pelas suas aparições. Que ficaram indeléveis. Ajudadas, naturalmente pelos seus quadros, memória viva dele a lembrá-lo diariamente lá em casa.
Ou em qualquer lugar. Como aqui mesmo, neste mar algarvio, sem baleias.



Onésimo Teotónio Almeida
Alvor, 27 de Junho de 2006

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domingo, 14 de março de 2010

Assembleia Municipal das Velas aprovou voto de pesar pelo falecimento de Carlos Faria



VOTO DE PESAR


Carlos Faria, poeta deste “S. Jorge: Açores! Perto de Portugal como tudo o que está no mar…” onde “esmeralda é a pele da ilha”, faleceu no passado dia 16 de Janeiro.
Foi ele que uma vez escreveu: “sobrevoar S. Jorge dá-me uma alegria nova e diferente. É um longo corpo de pedra, uma natureza insular que sinto à sua altura humana e geográfica. S. Jorge: a ilha, a mais ilha, a mais demorada, tranquila, isolada de silêncio, longa garupa dum cavalo de basalto! A ilha mais ilha, a povoar o mar que a viaja!”
Mas quem é esse “viandante que vem das poluídas metrópoles de aço e betão descobrir o caminho telúrico para as fajãs”, como escreve Urbano Bettencourt?

Artur Goulart descreve-o:

“Representante de uma firma de produtos farmacêuticos, terminados os seus contactos profissionais, na Calheta com o dr. Fernando Tristão da Cunha, nas Velas, com o António Pamplona e o eng. José Maria Melo, na Farmácia da Misericórdia, o Carlos Faria estava em casa.
Tanto podia estar à conversa no cais com os pescadores, como sentado no adro da igreja, ou ao “canto”, numa das tantas “pedras da preguiça”, como ele lhes chamava, onde o tempo parece que não existe, num cavaqueio de histórias e ditos com algumas das figuras típicas e populares da Vila.
Ou então, voltar à farmácia, onde após o encerramento, a conversa continuava, afiada e solta, mais saudável e popular que um xarope para a tosse. Ou a refrescar o seu físico atlético, perante a estranheza dos velenses, num silencioso banho de mar à meia-noite na baía das Velas. Ou ainda, numa petiscada de lapas ou cracas e outros condimentos em casa de amigos, ao sabor das muitas e apimentadas crónicas locais. Ou porque não, nas Manadas, em casa do Padre Terra Faria, espírito irrequieto e frontal, casa sempre aberta, excelente biblioteca, cozinha livre a qualquer hora, enquanto houvesse e do que houvesse”.

A propósito da sua prática desportiva, nomeadamente a natação e o arremesso, sendo recordista nacional desta última modalidade, conta Costa Brites que “numa acalorada troca de impressões em Ponta Delgada (fim dos anos sessenta) ouvi afirmar a Carlos Faria que o dopping que recomendava a todos os atletas era o da solidariedade fraterna: No próprio dia em que batera este record havia doado sangue gratuitamente a uma senhora idosa que disso carecia!...”

Por sua vez, Onésimo de Almeida assim fala das suas chegadas aos Açores:

“De Lisboa tu chegavas carregado de produtos farmacêuticos embrulhados em poemas e novidades das artes e das letras onde se escondiam ideias ainda mais novas e que o mar não deixava fisgar da distância das ilhas há quinhentos anos encalhadas a meio do Atlântico apesar de esse dealbar dos idos anos sessenta ser já bem tardio no calendário mundial das comunicações . Nunca te vi com nenhum frasco de comprimidos nem de xarope mas as tuas conversas curavam os nossos resfriados apanhados nas correntes de ar que o Tenente-Coronel José Agostinho sabido de meteorologias e das maleitas do clima ilhéu nos dizia temer mais que um canhão”

Com efeito, Carlos Faria, embora nascido na Golegã, nas suas andanças de vendedor de drogas e mesinhas, apaixonou-se pela ilha de S. Jorge e dela escreveu os mais belos poemas.

Mas não foi só a Ilha que o seduziu, foram os Açores! E fizeram-no de tal forma que levou Eduardo Bettencourt Pinto, outro homem de letras açoriano, a escrever que ele “foi, durante muitos anos, uma «ponte» cultural entre as ilhas e o continente, um activista da açorianidade e cantor singular de S. Jorge, seu espaço idílico, humano e geográfico”

Para Álamo Oliveira, como escrevia na revista “O Jorgense” dedicada ao V Encontro de Escritores, “há uma geração significativa de açorianos (não só os que se ligaram à escrita, mas também os que se mantiveram culturalmente activos) que, sempre que se recorre ao passado, se encontra com o Poeta Carlos Faria” terminando dizendo “que a ilha de S. Jorge possui um estimável conjunto de poemas - hino, declaração, esponsal, paixão e encanto deste Poeta que, agora e muito justificadamente, a Câmara Municipal das Velas homenageia. Mas continuaremos em dívida. A homenagem que lhe é devida só poderá ser saldada quando abranger todas as ilhas dos Açores”.

Felizmente para nós Jorgenses e, muito especialmente, para nós Velenses, ao contrário de outras personalidades esquecidas pela Ilha depois de tanto lhe terem dado, o seu livro “São Jorge - O Ciclo da Esmeralda” foi editado pela Câmara Municipal das Velas em 1992, por ocasião da V Semana Cultural, tendo então o lançamento contado com a sua presença.
A mesma edilidade, em 23 de Abril de 1998, atribuiu-lhe a Medalha de Prata do Município.

No mesmo ano, o jornal “Correio de S. Jorge” organizou o V Encontro de Escritores Açorianos, que na sua programação constou uma sessão de homenagem dos escritores presentes a Carlos Faria, tendo sido oradores Urbano Bettencourt, Tristão da Cunha e Artur Goulart, enquanto alguns alunos, coadjuvados pelo «Grupo de Português» do Secundário da Escola Básica 2,3/S das Velas, executaram uma declamação musicada de alguns dos seus poemas.

Agora, Carlos Faria, desapareceu do mundo dos vivos mas, como dizia num dos seus poemas “vou partir … E, não consigo ir inteiramente!”

De facto, não foi inteiramente porque ficará na memória dos que com ele privaram e nos seus poemas que permanecerão incólumes e “os pescadores no Cais das Velas” lhe continuarão a dar um Bom Dia “até ao cerco da noite!” porque em S. Jorge se deleitava e demorava. Mais do que isso, na sua homenagem à ilha “São Jorge – O ciclo da esmeralda”, afirmava e assinava o registo insistente da sua pertença: "Fico em São Jorge: / Viajar sem Viajar!”

Assim, proponho que a Assembleia Municipal das Velas aprove um Voto de Pesar pelo falecimento do Poeta Carlos Faria e guarde um minuto de silêncio em sua memória, fazendo constar este texto na página do Município das Velas e enviando-o ao seu filho, senhor Carlos Nuno Faria, sugerindo também à Câmara Municipal das Velas que, em preito de homenagem, reedite o livro “São Jorge - O ciclo da Esmeralda”

Velas, 30 de Janeiro de 2010

O proponente

António Frederico Correia Maciel

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