segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Recordar Carlos Faria, em São Jorge - de Artur Goulart

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Crónica à segunda /15



Conheci o Carlos Faria em S. Jorge, nas Velas, minha terra natal, aí pelos anos 53-54 do século passado. Eu, aluno do Seminário de Angra em férias grandes, ele, no desempenho da sua vida profissional, a dar início ao seu fascínio pela ilha, à sua “naturalização”. Nessa altura, andava eu pelo sétimo ano, o segundo do Curso de Filosofia, como eram conhecidos os três anos preparatórios do Curso de Teologia, últimos quatro dos doze do Seminário. O professor de filosofia era o doutor José Enes, figura significante do pensamento filosófico em Portugal, que nos marcou profundamente, a mim e a muitos outros, ensinando-nos a reflectir sobre o porquê, o sentido das coisas e da vida. Não debitava à toa textos de compêndio escolástico, mas persistentemente nos levava à leitura (alguém me faria hoje acreditar que eu então li de fio a pavio “O Riso” de Henri Bergson?), abria perspectivas de análise, apontava metodologias, trazia para a ribalta as modernas correntes filosóficas.

Raramente depois, nas férias, se encontrava alguém com quem trocar impressões sobre tais assuntos. O Carlos Faria era excepção.


Recordo perfeitamente no Jardim das Velas, eu e outros estudantes em férias, a que se juntou o Carlos, sentados debaixo de uma árvore de copa muito redonda, a que nós chamávamos de “sala azul”, por oposição às do outro lado, maiores, que formavam a “sala verde”, a discutir, ou melhor, a discorrer, lançar opiniões, sobre o existencialismo como se disso dependesse o gozar das férias e, porque não, o rumo da história.
O Carlos, grande conversador, podia não ter preparação filosófica, mas o seu raciocínio arguto e o discurso provocador, aliado às suas experiências de vida e de viagens, ao verbo fácil e atraente, mantinha a chama acesa até soprarem outros ventos de férias.
Representante de uma firma de produtos farmacêuticos, terminados os seus contactos profissionais, na Calheta com o dr. Fernando Tristão da Cunha, nas Velas, com o António Pamplona e o eng. José Maria Melo, na Farmácia da Misericórdia, o Carlos Faria estava em casa.
Tanto podia estar à conversa no cais com os pescadores, como sentado no adro da igreja, ou ao “canto”, numa das tantas “pedras da preguiça”, como ele lhes chamava, onde o tempo parece que não existe, num cavaqueio de histórias e ditos com algumas das figuras típicas e populares da Vila.
Ou então, voltar à farmácia, onde após o encerramento, a conversa continuava, afiada e solta, mais saudável e popular que um xarope para a tosse. Ou a refrescar o seu físico atlético, perante a estranheza dos velenses, num silencioso banho de mar à meia-noite na baía das Velas. Ou ainda, numa petiscada de lapas ou cracas e outros condimentos em casa de amigos, ao sabor das muitas e apimentadas crónicas locais. Ou porque não, nas Manadas, em casa do Padre Terra Faria, espírito irrequieto e frontal, casa sempre aberta, excelente biblioteca, cozinha livre a qualquer hora, enquanto houvesse e do que houvesse.
Aí, num espontâneo serão poético, recordo-me, o Carlos Faria, no chamado salão paroquial, pedir um cobertor para recitar. Eis que começa a declamar o Mostrengo de Fernando Pessoa, ora deitado ora levantado, tanto encenando o monstro que “rodou três vezes”, como a nau e o homem do leme, enquanto a sua voz quente ecoava “manda a vontade, que me ata ao leme, de El-Rei D. João Segundo”. Memorável.

Em S. Jorge se deleitava e demorava. Mais do que isso, na sua homenagem à ilha “São Jorge – O ciclo da esmeralda”, afirmava e assinava o registo insistente da sua pertença: “Fico em São Jorge: / Viajar sem Viajar!”

Évora, 1 de Fevereiro de 2010
Artur Goulart

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