segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Urbano Bettencourt (O Gosto das Palavras, Col. Gaivota, n.º 31. Angra do Heroísmo, SREC,1983).

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Anexo 1 ao Ciclo da Esmeralda

Carlos Faria desembarcou na Ilha quando os sexos dos mordomos murchavam de gangrena e de fastio e as nuvens estendiam os dedos lesmados por cima dos cabeços, das cabeças e das repartições públicas, as marés do tempo escoavam-se imperceptíveis sem ondas nem espuma, deixando apenas um rasto lento e molhado nos olhos e nos lábios: em quinta ou sexta-feira santa, talvez antes no sábado castrado, os navios tinham-se enforcado no Morro das Velas, voltados para a Montanha imóvel que o Almeida Firmino restaurara com o engenho da sua palavra dolorida.
Quem é o viandante que vem das poluídas metrópoles de aço e betão descobrir em 1979 o caminho telúrico para as fajãs, Kerouac naufragado a meio da viagem entre a Europa e a América? Que estranhos desígnios ou augúrios percorrem o homem que se senta em Setembro a ler os tempos pelo rumo das aves migratórias, Ferlinghetti à porta do café do Mike à espera que os humildes herdem a terra sem terem de pagar o imposto sucessório? É preciso não esquecer que Raul Brandão passou por aqui há cinquenta anos, armado com o seu pincel impressionista e apaixonado pela cor e pelas gentes destas Ilhas (ainda) Desconhecidas.
Carlos Faria é um marinheiro eventualmente guardador de rebanhos, por outras palavras um guardador de rebanhos eventualmente marinheiro, ou melhor, Carlos Faria não é uma coisa nem outra, mas ambas ao mesmo tempo e a tempo inteiro e entra por terra dentro disposto a conciliar a neura e o spleen de Roberto de Mesquita (veja-se Baudelaire, esse rei de um país pluvioso, exilado nas Ilhas, a sífilis a corroer-lhe os velhos casarões abandonados, baços e húmidos) com o grito revoltado e marítimo de Antero, definitivamente ancorado ali onde o mar quebra, num cachão rugidor e monótono.
Flagelado pelo drama antigo de partir ou ficar, Carlos Faria assume o compromisso de embarcar; porque embarcar não é partir, muito menos ficar, mas apenas um pretexto para ver a Ilha de fora e simular a ausência nunca realizada, impossível que é quebrar as raízes que se infiltram pelas frestas de lava até ao ventre em fogo do Atlântico. E é no âmago da simulação lucidamente jogada que se encontram o momento e o espaço da solidariedade com os homens, com a terra, mesmo com as pedras e os bichos, num abraço total capaz de concretizar o projecto supremo de reabilitação pública e universal do colectivismo das abelhas.


A contribuição acima, de Urbano Bettencourt, que agradecemos e que publicamos com gosto, foi-nos enviada acompanhada da seguinte mensagem:


Caros amigos,
Estive de tarde a «folhear» os blogues e lembrei-me de um texto que escrevi por ocasião da primeira edição de «S. Jorge-o ciclo da esmeralda».
Publiquei-o inicialmente num dos nº da revista «A Memória da Água-Viva» que o Santos Barros e eu coordenámos em Lisboa, nos finais dos anos 70.
Mais tarde incluí o texto num meu livro de ensaios. É esta a versão que vos envio, se acharem que não desmerece do livro.
Abraço

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